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terça-feira, 7 de dezembro de 2010

CINCO MESES

Sabe quando você precisa desabafar com alguém, mas nunca tem esse alguém por perto na hora que precisa, ou não se sente à vontade para se abrir quando se está perto dessa pessoa?

Estes últimos meses eu passei muito por isso...

Lembro da virada no ano. No dia 2 de janeiro eu deixei a casa dos meus pais para voltar para São Paulo por causa do trabalho. E nessa primeira semana minha mãe me comunica que meu pai não conseguia mais andar. Foi o primeiro choque.

Meu pai tinha caído cerca de um mês antes e os exames mostraram uma fissura na coluna. Os médicos, nesse primeiro exame, já queriam internar e fazer a operação, mas o médico que acompanhava meu pai no tratamento da doença de Parkison não aconselhou este procedimento, porque ele já era de idade e uma cirurgia imediata na área da coluna era arriscada demais.

Durante todo final de 2009, apesar da dificuldade, ele ainda caminhava. Mesmo com tratamentos, a coluna foi se deformando, a ponto de atingir um nervo que afetou suas pernas. E foi isso que o fez parar de andar logo na primeira semana de 2010.

Quando eu voltava para casa dos meus pais, durante o mês de janeiro, lembro do meu pai na cadeira de rodas, lembro de procurar uma bomba para encher os pneus da cadeira, e da última vez que conversei com ele em casa, falando para ele se esforçar para tentar levantar sozinho da cadeira e sentar na cama.

Devido o Parkison, ele tinha dificuldades de se levantar e para atividades simples como ir ao banheiro era sempre acompanhado de muito esforço. Muitas vezes ele não conseguia se levantar e acabava fazendo duas necessidades no quarto, onde deixávamos já o urinol. Acrescido ao novo fato de não poder andar, isso o prejudicou ainda mais em todas as tarefas simples.

Lá em casa viviam na época minha mãe e meu irmão. É um sobrado, com o bazar da família, onde os dois trabalham, e deixávamos uma campainha ao lado do meu pai ou de tempo em tempo alguém ia ver como ele estava. Na maior parte do tempo ou ele estava vendo tevê ou estava dormindo.

A necessidade também de ir vê-lo a todo momento não era apenas devido à falta de mobilidade, mas também por causa dos horários dos remédios. Eram cerca de 4 a 5 comprimidos diferentes a cada duas horas, todos contra o Parkison.

Entrou fevereiro. Era quinta-feira, dia 11, meu aniversário, oito da noite. Recebi um telefonema de minha mãe avisando que meu pai fora internado. A internação havia sido no começo da tarde, mas com toda correria só conseguiram me avisar àquela hora. Foi o segundo choque.

Eu estava com alguns amigos, num restaurante japonês. Não sabia o que dizer. Não sabia o que fazer. Não tinha o que falar. Minha mãe apenas passou alguns detalhes do que aconteceu. Pressão baixa. Desmaio. Resgate. Hospital. UTI. Nada mais.

Voltei para casa na sexta-feira e nesse mesmo dia fui para o hospital. Meu pai estava internado na UTI, respiração forçada, monitores cardíacos, pele machucada e arroxeada. Inconsciente. Veio a imagem da minha mãe internada na mesma UTI, anos antes, depois da retirada da pedra da vesícula. Na época ela estava consciente. Agora era meu pai. Inconsciente. Máquinas o mantinham respirando. Terceiro choque.

Um mês na UTI, visitas semanais para ver algum progresso na recuperação. Infecção hospitalar. Sepse. Ninguém conseguia me dizer qual era o problema. Chegou com quadro de desnutrição e teve compulsões. Ninguém me explicava nada. Tudo era entrecortado.

11 de março. Aniversário do meu irmão. Minha mãe me liga e diz que meu pai saiu da UTI. Felicidade temporária. Aumento da preocupação. Na UTI havia cuidados a toda hora, no quarto era apenas algumas vezes. Era preciso ter um acompanhante a toda hora.

Durante a semana, minha mãe ficava no período noturno, e de dia a diarista e a mulher que cuidou da minha avó revezavam como acompanhante. No final de semana, de sábado para domingo, eu ficava no hospital, quase sempre acordado.

Era preciso usar um avental e, toda vez que fosse entrar em contato com meu pai, era preciso usar luvas. Poucas vezes ele ficava consciente, em nenhuma delas conseguiu falar.

Eu fazia massagem em seus pés, mãos e braços. Chamava a enfermeira para retirar o excesso de catarro do pulmão dele pela traqueostomia. Era a aspiração. Ajudei algumas vezes na troca das roupas de cama, da fralda geriátrica, nas visitas das fisioterapeutas. Tentava animar levando meu notebook e colocando músicas de Okinawa. Falava com ele que para ele se recuperar logo, porque seu neto havia nascido e ele tinha que conhecê-lo. Eu buscava ajuda das minhas amigas Rosa e Dyana, da Itália e da Coréia, que eram quem sempre estavam online durante a madrugada. Eu não sabia o que fazer.

As poucas vezes que meu pai acordava eu não sabia se ele estava realmente consciente. Eu segurava suas mãos e ele apertava, mas não sabia se era por reflexo ou porque sabia que eu estava lá. Seu olhar ficava perdido no teto, algumas vezes se encontravam com os meus e ficavam parados, mas não pareciam me reconhecer. Não pareciam me reconhecer.

Médicos iam e vinham. Falavam em melhoras, em infecção, em quadro estável, melhora tímida. Consegui minhas férias. Pegava dois ou três dias para descansar e ficava o resto da semana lá. As férias terminaram. Voltava a ficar nos finais de semana. Isso se repetiu até o mês de julho.

Dia 8 de julho. Quatro da tarde. Estava às voltas com um problema da obra envolvendo projetista, cliente, fiscalizadora. Estava vendo um email que o coordenador da obra havia elaborado e ele queria saber se estava certo aquilo que ele tinha escrito. Meu celular tocou. Vi que era de casa. Era meu irmão. Naquele momento, achei que era para saber se eu ia voltar na sexta de noite ou sábado de manhã. Não. O telefonema não era para fazer uma pergunta. Era para informar. Meu pai tinha falecido.

Me levantei e fiquei olhando a porta da saída e ao redor do escritório. Eu queria subir até a cobertura e gritar. Eu queria sumir dali. Eu queria sentar em algum lugar e ficar cercado de silêncio, para poder entender aquela frase. "Papai morreu..."

Lembro da Flávia, da qualidade da obra, e a Gilvânia, administrativa, me abraçarem, perguntando o que havia, e eu não conseguia falar. Lembro de ter dito baixinho "faleceu". E lembro também que não podia ficar mal. Tinha que ficar forte para estar do lado da família. Quem era eu para ficar daquele jeito? Eu tinha que estar presente para apoiar a todos.

Lembro da Gilvânia me entregando o tíquete para solicitar um táxi. Lembro do fiscalizador da obra aparecer me chamando para falar de mais algum problema, uma ou duas vezes, e eu, no telefone, o ignorei, e a Gilvânia foi explicar a situação. Lembro da Carol, estagiário, não ter entendido o que havia ocorrido. Lembro de pegar o táxi, do trânsito para chegar em casa. Lembro do recado da Rosa via celular, quando eu mandei a notícia. Naquela noite, velei o corpo do meu pai.

Passei a noite ao lado do caixão, junto com o segurança que fazia rondas pela vizinhança. Caixão lacrado porque havia risco de infecção. Depois de tantas noites em claro, aquela seria a última que estaria ao lado do meu pai.

Meus amigos de São Paulo vieram, Muitos deles. Minha mãe e minha tia ficaram felizes por ele terem vindo.

Tantas coisas passaram por minha cabeça. Depois que passei na Unicamp, houve uma noite que acordei por causa de um barulho e fui até o quarto do meu pai, e eu o encontrei caído no chão, desorientado. Dias me perguntando se eu realmente deveria sair de casa para ir para a Unicamp ou ficar em casa cuidando dos meus pais.

Sentimento de culpa. Eu poderia ter feito mais quando estava no hospital. Poderia ter conversado mais, colocado mais músicas, feito mais massagens.

Sentimento de revolta. Não houve nenhuma manifestação por parte do RH da empresa, nenhuma nota de falecimento como eles sempre mandam nessa situação.

Sentimento de alívio. Ele não estava mais sofrendo.

Sentimento de vazio.

Sentimento de fracasso. Quando namorava, não aprensentei ela à família, porque ela não queria ser apresentada assim. Não constituí família antes dele partir. Não tive um filho para com ele sorrir. Não consegui retribuir este amor.

Voltei ao trabalho antes de dar uma semana, porque precisava ocupar minha mente.

Fiz algumas mudanças para cicatrizar a ferida.

Faltava este desabafo.

Hoje faz cinco meses.

A ferida ainda dói.

3 comentários:

Leo disse...

Caro Enobe,

Diante de uma perda dessa magnitude, nada do que fizemos parecerá suficiente. E não seria mesmo, pois não podemos fazer o que que gostaríamos: trazer de volta aqueles que nos são caros e se foram.

Desabafar é ótimo. Liberta a mente.
Perdoar a nós mesmos por erros reais ou imaginários é melhor: liberta a alma.

Que os dias do futuro que se tornará presente sejam melhores, sem o peso dos dias passados.

"A cada dia basta seu cuidado".

♥ Meire ♥ disse...

Alê
Li o seu post, e gostaria de dizer-te que tudo que aconteceu e como você agiu foi como poderia na
época...conforme tudo que aprendeu, conforme seus valores morais, de acordo com suas possibilidades. Não se culpe...transforme a revolta em preces dulcificadas com seu amor para que cheguem até seu pai...Deixo aqui meu abraço fraternal e votos sinceros de continuidade de muita paz

Alexandre disse...

Valeu pela força, pessoal. O post é a forma de desabafo para aliviar um pouco as coisas aqui.

Abraços