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quarta-feira, 23 de julho de 2008

Amarula


Ela abre os olhos e levanta a cabeça. Tudo está silencioso mas nem sempre fora assim. Ela lembrava de um som contínuo e alto e daquela mulher abrindo a porta. Lembrava do barulho de fora e de dentro mas não sabia quando tudo aquilo havia terminado.

Desceu da cama e saiu no corredor, andando bem lentamente, parando na porta da cozinha. Ergueu as orelhas e prestou atenção na penumbra, e então saltou, prendendo, com suas patas dianteiras, uma barata. Mordeu-a três vezes antes de resolver come-la.
Enquanto mastigava, girava sua cabeça pelo cômodo. Aquelas pessoas ficavam ali, naquela caixa quente ou naquele canto que saía água, e também ao redor da mesa, comendo coisas cheirosas. Nisso baixou o olhar para um prato azul no chão. Havia sempre comida ali, era o tempo do sossego. Houve o tempo da aventura, quando rasgava sacos de lixo procurando comida, depois veio o tempo do sossego e agora vivia o tempo da caça. Caçava ratos, pombos, gatos. E baratas, como uma que estava parada numa placa na parede, escrito “Amarula”. Era como aquelas pessoas a chamavam, um nome que nunca mais ouviria.

Saiu da cozinha e parou. À esquerda viu o corredor por onde viera e a sua frente, a sala. Caminhou até a estante e cheirou os panos e um saco preto num canto. Cochilava às vezes ali. Sentou-se e olhou para o sofá. Lembrava-se de pessoas deitadas, vendo aquela caixa de luzes, gritando, falando, namorando.

Levantou-se e foi até a escada. Quase sempre ela recebia as pessoas ali, toda feliz, distribuindo alegria. Agora, olhando escada abaixo, não tinha ninguém a quem receber. Não tinha a quem dar alegria.

Amarula desceu a escada, que formava um “L”, mordeu uma coleira jogada num canto e saiu na calçada. Começou a seguir o trajeto que lembrava, fazia suas necessidades nos pontos em que se acostumara e voltava para casa, nunca encontrando uma pessoa nas ruas. Largava a coleira no mesmo canto e parava no topo da escada, levantando as orelhas e cheirando o chão na esperança deles terem voltado. Seguiu pelo corredor e olhava em cada porta: ninguém na primeira à direita, nada no banheiro e um vazio na segunda à direita. Na frente desta, o quarto onde costumava dormir, onde seus filhotes brincavam e seu companheiro cochilava.

Ela continuou e saiu na varanda, sentando-se e observando a cidade. Pássaros, cães, gatos, bichos em geral. Nada do som das pessoas. Deitou-se e colocou a cabeça sobre as patas cruzadas, os olhos de ressaca indo de um lado para outro. Era independente, tinha um companheiro, tinha seus filhotes. Mas faltavam os amigos. Faltavam aquelas pessoas da casa, aquelas pessoas que não eram da casa. E fechou os olhos e adormeceu.

A mulher abriu a porta do quarto. Ela ainda estava lá! Amarula saiu no corredor atrás dela e diminuiu a marcha ao chegar na sala. Havia alguém dormindo no sofá. Ela não teve dúvidas, foi em sua direção e tentou lamber o rosto do visitante, mas este a manteve afastada com uma das mãos. É sempre difícil dar alegria às pessoas, Amarula sabia, mas uma hora elas aceitavam. De tanto oferecermos carinho, um dia o carinho retorna para gente.

Nem que fosse preciso acordar o visitante todos os dias daquele jeito...

13/07/03

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