Páginas

sexta-feira, 25 de julho de 2008

A Música da Vida


Everton nasceu surdo. Na infância já conseguia “escutar” através das vibrações e dos movimentos labiais. Na adolescência, dominou a linguagem corporal. Adulto, ganhou a vida em empregos onde ser surdo era uma bênção. Aposentado, ganhou muito dinheiro em cassinos, pois conseguia saber quando parar e quando apostar tudo apenas observando as pessoas ao redor. E agora, no leito de morte, olhava para o teto, onde um anjo movimentava os lábios. Então, Everton falou:

-Queria escutar os sons da minha vida...

E assim o anjo permitiu.

Everton levantou-se da cama e escutou o cobertor deslizar. Em som suave, bem leve e rápido. Ao colocar os chinelos, percebeu que os mesmos faziam um som de “casa”, apesar de nunca ter ouvido um antes. Era relaxante. Levantou-se e tudo ia tornando-se um novo mundo: o rangido da cama, o tiquetaquear do relógio, os grilos no jardim, o vento correndo pelas ruas da cidade, os veículos distantes, as vozes na televisão, os cachorros da vizinhança, sua própria respiração. A música de casa.

Caminhou até a porta e a abriu devagar, fazendo uma cara feia. Ah, era por isso que jogavam óleo nas dobradiças. Pisou no corredor, não ouvindo nada ao tocar no carpete vermelho. Não era um som, era a falta dele, que aquele carpete produzia ao pisarmos nele. Continuou andando, e terminou num cassino, num cassino onde costumava jogar. Pessoas falando ao mesmo tempo, mas não uma mais alto que a outra, sons de cartas batendo contra mesas, fichas sendo arrastadas e puxadas sobre superfícies verdes, risos, gritos contidos, o bater de gelo contra o vidro de copos. A música do dinheiro.

Havia um elevador ao seu lado e Everton resolveu entrar. Apertou alguns botões (som de teclado, lembra trabalho) e as portas fecharam-se. Uma música suave tocava lá dentro. Notas harmônicas, uma paz na sua alma. Um instrumento por vez, na mesma suavidade, na mesma tranqüilidade. Sim, a música era realmente divina. Então, uma agitação, os instrumentos começam a tocar com maior velocidade, um parecendo atropelar outro, os olhos de Everton atentos, seu espírito está em estado em alerta, tudo isso vendo apenas sua imagem no espelho do interior do elevador. Mas, por fim, a música termina, nenhum instrumento atropelou o outro e ficava aquela sensação de sobrevivência, de descoberta, de iluminação. Era incrível como havia tantos instrumentos, e mais incrível ainda era escutar que, mesmo um competindo com outro, não havia perdas, apenas ganhos, quando têm um juiz à altura. A música das batalhas.

O elevador pára (plim!) e abre as portas. Everton percebe que está dentro de um ônibus, parado num engarrafamento. Olha ao redor. Era o ônibus que pegava quando voltava do trabalho. Lembrava daquele trânsito, daquele inverno que vivia para chegar em casa. Lembrava-se que ficava estressado com tudo aquilo, mas agora, escutando as buzinas, os motores, gente xingando... não, havia muita desarmonia ali, muita poluição sonora. Sua cabeça já estava doendo e uma dor cutucava seu peito. Não sentia isso quando voltava para casa, aquilo ali era devido a barulho, aquilo era um mal. A música do caos.

Começou a bater contra a porta do ônibus e saiu numa rua vazia. Onde estava agora não sabia, mas viu um táxi vindo em sua direção. Fez sinal para que parasse e embarcou no veículo. Nada disse ao motorista e este nada perguntou, ia apenas guiando e mudando as estações de rádio, dizendo o que estava tocando. Jazz. MPB. Blues. Rock nacional, internacional. Valsa. Samba. Pagode. Sertanejo. Ópera. A música das pessoas.

Everton desceu do táxi e olhou ao redor. Estava no meio de um salão imenso, onde um som contínuo e repetitivo alcançava seus ouvidos. Tecno, dance, eletrônica. Era impossível escutar o que qualquer outra pessoa falava, mesmo se essa pessoa falasse ao pé do seu ouvido. Sons distorcidos e dançantes. O que haveria em outro salão? Saiu e foi espiar. Hip-hop e rap, versos e rimas da vida sofrida. Em outro, sapateado. Notou uma porta num canto, bem escondida, e foi em sua direção, abrindo-a. Sons de beijos, gemidos agudos, respirações ofegantes, esfregar de corpos. A música da juventude.

Continuou caminhando até chegar num salão vazio, mergulhado em um silêncio e escuridão profundos. Toda aquela agitação que tinha feito seu coração acelerar agora ia passando aos poucos, uma tranqüilidade ia tomando conta do seu corpo e logo entendeu o que aquele salão significava: de tantos sons, de tantas músicas que escutou, devia aprender que o silêncio também era um tipo de música, que para apreciar os outros tipos era necessário apreciar àquele, não que um fosse maior que o outro, apenas que um completava o outro. Então uma porta abriu-se, trazendo luz ao salão, e a voz da sua mãe perguntava se tudo estava bem. Era a música da sua infância.

O anjo apareceu novamente e perguntou, movimentando os lábios apenas. Everton sorriu e demorou um pouco para responder:

-Se fosse criança, diria que a música mais linda que ouvi foi à voz da minha mãe. Mas se fosse adolescente, diria que foram os gemidos e beijos da minha primeira namorada. Como adulto, posso dizer que foi o sim da minha esposa quando a pedi em casamento. Agora, idoso, posso dizer que foi sua voz, pois nunca havia escutado nada antes disso. Mas quer saber mesmo? A musica mais linda é a vida mesmo.

E a dor em seu peito sumiu definitivamente.

11/2003

Nenhum comentário: