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terça-feira, 22 de julho de 2008

Gomes


Gomes era um viciado. Um viciado em leitura. Gostava de ler de tudo: romances, poesias, críticas, biografias, teses, bulas de remédios. Gostava de escrever para os escritores, exigindo novas obras, novas situações. Quando achava que certo autor estava sendo repetitivo não deixava barato, cobrava alterações, cobrava novidades. Não que fosse um ótimo crítico, muito menos um entendedor da área. Era apenas um modo de tentar entrar nas histórias que lia.

Gomes era taxista. Também tinha milhares de histórias para contar, só não sabia como coloca-las no papel. E também porque tinha preguiça. Mas o que isso importa agora? Gomes conhecia muitas pessoas, conhecia muitas vidas das quais participou apenas durante alguns minutos, servindo de transporte de um cenário para outro. Nunca, nunca era a peça chave do trama. Até mesmo em sua vida parecia ser um personagem secundário. Como podia isso, meu deus? Ô, menino, você está acabando comigo! Era o que costuma dizer para o vento.

Gomes taxista e leitor viciado. Talvez esta história deveria terminar por aqui, até mesmo porque existe modos e modos de querer entrar em uma história. Mas Gomes teve seu destino cruzado com um personagem obscuro, que pagou por uma corrida até o aeroporto e esqueceu (esqueceu mesmo?) um esboço de um livro no banco de trás do táxi. É claro, Gomes iria deixar o esboço do livro na sede da empresa, deixaria ali juntamente com os milhares de outros objetos esquecidos pelos passageiros, mas, puxa, era um esboço de um livro! Não havia sido publicado, talvez ele, sim, ele, pudesse fazer algumas alterações, pudesse fazer algumas críticas, poderia conversar pessoalmente com o escritor, talvez, meu deus, talvez até participar como personagem principal em algum outro livro!

Seria apenas por aquela noite. Gomes levou o esboço para casa, iria ler, iria escrever alguns comentários, depois deixaria na sede da empresa. Sim, que mal isso faria, apenas uma noite?! Mas a noite se prolongou, e amanheceu, e novamente anoiteceu. O esboço tinha muitas e muitas páginas, histórias entrelaçadas que se uniam e se separavam, uma obra que se dobrava sobre si mesmo e depois se desdobrava sobre as épocas que descreviam. Não haviam anéis, não haviam histórias do sul, não era real nem irreal. Havia coisas que Gomes nunca havia visto, entretanto conseguia fazer alguma idéias do que se tratava. Como podia, parecia uma história adaptada de alguns anos atrás, de milhares de vidas isoladas que, por obra do acaso, acabaram se cruzando. De que terras longínquas haveria nascido ou vivido o escritor, para tantas vidas assim escrever? Seria tudo fruto da sua imaginação? Tantas vidas, cada uma diferente uma da outra, mas todas acabaram se cruzando em algum ponto e toda trama parecia rumar a um fim inesperado. Era uma leitura que precisava de muito fôlego.

Uma semana se passou e Gomes finalmente havia chego ao último capítulo do esboço. Será que ainda haveria surpresas no final, mais ainda do que teve até ali? Não importava, estava perfeito, era o livro que sempre esperou ler, que sempre esperou encontrar. O capítulo final tinha só uma página, não poderia haver mais uma virada de mesa, haveria? Não, a não ser que o autor tenha pensado em outra coisa completamente diferente do que havia escrito até então. Mas o que poderia ser? Talvez um anti clímax, isso fecharia tudo, ou mesmo um lugar comum, o que não era de se esperar depois de tudo que foi escrito. Mas seria isso mesmo?

A campainha tocou e, antes mesmo de Gomes se levantar, a porta se abriu. Era o passageiro que havia esquecido o esboço do livro no táxi. Gomes ficou paralisado, sem saber se era por medo, susto ou mesmo por ter ficado tanto tempo na mesma posição para ler o esboço. O passageiro avançou calmamente, apanhou seu pertence das mãos de Gomes e deu meia volta, mantendo o dedo marcando o capítulo que faltava. Antes de fechar a porta totalmente, o taxista percebeu que o capítulo final havia aumentado mais umas cem páginas, como que por mágica.

Ninguém sabe, mas a última coisa que Gomes pensou antes de sumir foi “ô, menino, só cem páginas?”.

17/04/2004

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